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Considerações sobre o Projeto de Lei 7596 – “Lei do Abuso de Autoridade” –

admin Comente 10.09.19 1047 Vizualizações Imprimir Enviar

Este artigo, em colaboração com a Coligação dos Policiais Civis do Estado do Rio de Janeiro e o Sindicato dos Policiais Civis do Estado do Rio de Janeiro, versa sobre o Projeto de Lei 7.596/2017 e tem como objetivo alertar sobre as mudanças no que concerne a novas tipificações do chamado abuso de autoridade, bem como alertar as implicações negativas que eventualmente refletirão no trabalho do agente de segurança, em especial o Policial na função judiciária.

Importante dizer que as punições previstas são: medidas administrativas, em especial a perda ou afastamento do cargo; cíveis como, por exemplo, o pagamento de indenizações; e penais, com a restrição de direitos e, excepcionalmente no artigo 10º, a privação da liberdade.

O texto já começa demonstrar sua abstração no artigo 1º, §1º quando trata do dolo, ou melhor, do especial fim de agir do sujeito, onde retrata a exigência da finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou por mero capricho ou satisfação pessoal. Obviamente as expressões “mero capricho” ou “satisfação pessoal” acabam com um possível resguardo que o agente poderia ter.  O animus de conseguir um elogio do seu chefe imediato ou ser citado numa reunião interna são exemplos de situações que facilmente poderiam se enquadrar na parte final do parágrafo; assim, se efetivamente o Julgador estiver inclinado a condenar o indivíduo não me parece que este parágrafo atuará como um salvo conduto.  Trata-se na verdade de uma norma inócua.

Contudo, podemos fazer poucos elogios a lei, dois em especial: Primeiro, deixar expresso a comunicabilidade das esferas, sendo que uma pessoa inocentada na esfera criminal não pode ser condenada na cível ou administrativa. Já vimos diversos exemplos de casos em que Policiais foram inocentados em âmbito criminal, mas que perderam seus cargos – aqui, me parece que se algo assim acontecer, a chance de reintegração está facilitada; segundo ponto, a exigência da reincidência no abuso de autoridade para perda do cargo ou função.  Sabe-se que as condutas de abuso de autoridade não se restringem a um diploma legal.  Por exemplo, o artigo 7º, §12º, do Estatuto da OAB, que prevê:

A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”. Assim caberá a doutrina e jurisprudência estabelecer os limites desta reincidência. Será na mesma conduta? Em condutas dentro da mesma lei? Em qualquer conduta que seja considerada abuso de autoridade, independente de onde estiver inserida? De qualquer forma, abrem-se aqui algumas possibilidades dos Policias obterem êxito ou uma decisão um pouco menos desfavorável caso respondam por alguma ação.

Vamos aos principais pontos da nova lei:

Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem que a pessoa tenha sido intimada a comparecer em juízo

Deixa claro que acabou a condução coercitiva em fase de inquérito. Por diversas vezes o Inquérito fica com a pendência de uma oitiva e o sujeito, por mais que seja intimado, não comparece.  Caso seja uma prova suplementar, o Ministério Público poderá dispensar a diligência ou considerar que o direito ao silêncio foi exercido; mas e se tal prova for fundamental, principalmente se tratando de uma testemunha que não está à mercê da possibilidade de se manter calado? Grandes chances de não se ter oferecimento de denúncia e de não se chegar à fase processual.

usar algemas em quem não resista à prisão, não ameace fugir ou represente risco à sua própria integridade física ou à dos demais

Este provavelmente é o artigo mais problemático da nova Lei. Citando o entendimento do mestre Clóvis de Barros Filho: “o ser humano é o ser humano pelo seu poder de improvisação e adequação”, o filósofo continua: “O gato morrerá de fome se somente houver alpiste para comer, o pombo morrerá de fome se houver apenas carne para comer, mas o ser humano caso precise comerá o alpiste, a carne, o pombo e o gato”. Como prever a ação de um ser humano? Alguém aparentemente tranqüilo pode mudar completamente em segundos.  Impossível ter tal previsibilidade, nem mesmo em relação a alguém que nunca teve um histórico de agressividade.  Jean-Jacques Rousseau nos ensinou que em situações extremas o ser humano é capaz de tudo. É absurdo querer que um Policial saiba se aquele sujeito poderá ou não reagir.

invadir ou adentrar imóvel sem autorização judicial e fora das condições previstas em lei (exemplo prestar socorro)

Vamos ao caso concreto: diligência de busca e apreensão ou mandado de prisão numa comunidade do Rio de Janeiro. Poucos indivíduos como os Policiais sabem das dificuldades que há dentro de uma favela. Além do confronto armado, temos ruas sem pavimentação, casas sem numeração, becos sem nomes, locais conhecidos como “rua da padaria da Maria” ou localidade conhecida como “Camboja” são identificações dos próprios moradores que recebem suas encomendas e bens nas associações dos moradores. Como delimitar exatamente o imóvel com suas necessárias especificações num local como este?

Além disso, em razão do próprio confronto dito anteriormente, o tempo para adentrar na comunidade é mais lento.  Acrescente-se, ainda, que os criminosos estão com uma visão privilegiada dos agentes de segurança; logo, um sujeito procurado, temido na região, sai do seu imóvel e se abriga em outro, por vezes utilizando da força e coação, até mesmo expulsando momentaneamente o morador. Tal informação chega ao Policial, poderá este verificar o informado?

Claro que não estamos pedindo um passe livre para invadir a casa de qualquer pessoa, mas um dispositivo como está reduzirá em muito a efetividade de uma operação policial.

Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso sem seu consentimento com o intuito de expor a pessoa a vexame

Aqui o mais importante é o final do dispositivo “com o intuito de expor a pessoa a vexame

Novamente algo abstrato que deixa o Policial vulnerável. Por diversas vezes se consegue identificar outras vítimas com a divulgação da imagem do autor de um crime.  Casos emblemáticos como do João Teixeira de Faria, vulgo “João de Deus”, ou Roger Abdelmassih, comprovam que, depois das matérias jornalísticas onde os mesmos tinham suas imagens divulgadas, diversas pessoas apareceram para denunciá-los. Estes ainda eram pessoas conhecidas, mas imagine um assaltante, sem repercussão pública, que atua em uma ampla região como “zona sul do Rio de Janeiro” com crimes em diversas delegacias do bairro. Uma destas delegacias consegue capturar o sujeito que tem outros procedimentos nas outras unidades sem ainda estar identificado e conseqüentemente reconhecido.  Não é uma forma hábil divulgar a atual imagem do sujeito, de preferência captando sua própria fisionomia, para que uma outra vítima possa ver e identificar sem margem para dúvidas o autor? Como dizer que tal filmagem teve esse condão ou de expor o criminoso a vexame? Será que o Policial irá se expor para que outros reconhecimentos aconteçam ou irá preferir deixar de fazê-lo por receio de responder à um abuso de autoridade?

Estender a investigação, procrastinando-a para prejudicar o investigado ou fiscalizado

Como está se tornando freqüente, parte do artigo deixa o Agente a mercê da interpretação do julgador. Os responsáveis pelo procedimento podem estar tendo dificuldades em obter provas para apontar autoria e materialidade.  Como saber até onde podemos manter a investigação em curso? Muitos inquéritos são solucionados quando não se tinha mais esperança de êxito.  Muito difícil saber se o prolongamento foi para prejudicar o suposto autor ou por comprometimento do funcionário público que tentou por todas as formas possíveis ter sucesso na sua ação profissional com coleta robusta de provas.

Dar início a persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente

Existem dois artigos muito parecidos na nova lei, tanto o artigo 27º como o artigo 30º coíbem a instauração de procedimento quando não se tem fundados indícios.  Existe um grave erro de interpretação do legislador quando expressamente veda o início da persecução penal (dividida em duas fases: a investigação criminal e o processo criminal). O termo usado na lei, equivocadamente, é amplo, ou seja, engloba tanto a primeira fase – que tem como objetivo verificar se efetivamente há materialidade em desfavor do investigado e a segunda fase – quando já existe provas suficientes para a judicialização da questão e o sujeito deverá se defender em juízo.  Ora, a formação da justa causa, que constitui condição da ação penal e consubstancia-se no lastro probatório mínimo e firme, indicativo de autoria e materialidade, é efetivamente o que se almeja no Inquérito Policial, na verdade é a “alma” do Inquérito Policial.  Assim, a lei deveria ter protegido o início do processo penal sem justa causa, pois por obvio desarrazoado fazer alguém responder na Justiça se na fase investigativa não se apurou nada contra ela, mas impedir a investigação criminal parece ser um protecionismo absolutamente exagerado. Mantendo-se este texto teremos, filosoficamente, uma situação Kafkiana, pois o efeito prescinde de uma causa e impedir a investigação da origem da causa automaticamente inviabiliza a existência do resultado.

Deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento

Outro dispositivo que é uma verdadeira cratera para inúmeras interpretações. Em primeira análise uma pessoa que está em erro, está com uma falsa percepção sobre uma dada realidade; logo, se o sujeito está nesta condição não terá como remediar de ofício. Outro ponto é a expressão “que sabe existir”, pois como provar que o agente sabia de tal erro e não o fez por malícia ou se efetivamente está passível, como qualquer ser humano, de errar?  Claro que não se busca amenizar o erro, ainda mais em se tratando de questões criminais que sempre estão direcionadas com o bem mais importante da pessoa – sua própria liberdade, mas daí a ser considerado como um crime de abuso de autoridade, parece que o legislador foi infeliz e poderá fomentar a inércia do Poder Público.

A lei coincidentemente surge num momento ímpar do país, com operações importantíssimas como a Lava-Jato.  Nunca na história deste Estado se prendeu tantos políticos poderosos e/ou empresários que acreditavam dominar o Brasil com aquilo que mais se apegam – o dinheiro.  Diversos Policiais, Delegados, Promotores e Magistrados mostraram que não é apenas esse pedaço de papel que vale e sim algo maior: a dignidade e a identidade de um povo que anseia por melhores dias.  A expressão “O GIGANTE ACORDOU” retrata essa vontade dos cidadãos de bem. Contudo, ainda na metáfora, está lei parece em muito um “dardo tranqüilizante” disparado por aqueles que mais temem este “gigante acordado”. Não há duvidas que esta lei não atende ao anseio de combate à impunidade e à corrupção.

Paralelamente a isto, já nos deparamos com outro absurdo que foi a suspensão dos Procedimentos que continham o Relatório de Inteligência Financeira (RIF), por decisão dada em processo envolvendo o filho do Presidente da República. Pode-se afirmar, sem medo de exagerar, que tal decisão é uma das mais gravosas em termos de propiciar a impunidade de grandes criminosos.  O RIF é uma peça que se junta no início da persecução criminal e considera-la uma prova viciada provocará o retrocesso de todo o procedimento.  Serão desastrosos seus efeitos na Lava-Jato e investigações dissidentes ou correlatas. Espera-se, no mínimo, a modulação dos efeitos, respeitando-se a coisa julgada, procedimentos em andamento e procedimentos já iniciados.

Todos aqueles que idealizam um país melhor devem ficar atentos a possíveis mudanças na nova Lei de Abuso de Autoridade, bem como à decisão do STF sobre os Procedimentos iniciados com o RIF.  Poderemos saber se o “gigante” continua andando ou se desmaiou com estas medidas que somente atendem aos que se privilegiam da impunidade.

RICARDO ROSSI JULLIEN é Diretor do Departamento da Carreira de Oficial de Cartório Policial do SINDPOL -RJ

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